segunda-feira, 12 de julho de 2010

Um brasileiro em Srebrenica

A Marcha da Paz em direção a Srebrenica, da qual falamos no post anterior, chamou a atenção do então estudante de jornalismo brasileiro Gustavo Silva, que esteve na Bósnia entre junho e julho de 2009 justamente para um trabalho de conclusão de curso sobre o massacre de Srebrenica. Ele soube do evento por acidente, aceitou o convite feito por um dos organizadores da Marcha e cumpriu todo o trajeto. A experiência será descrita por Silva em um livro, a ser lançado em breve.

Na entrevista abaixo, o agora jornalista conta como soube do evento e de impressões dele sobre a Marcha e a Bósnia. E antecipa novos projetos

De onde veio a ideia de fazer um trabalho sobre o massacre de Srebrenica?
A idéia surgiu quando Radovan Karadzic, ex-líder político dos sérvios na Bósnia, foi preso, em julho de 2008. Estava no SBT nessa época, trabalhando na editoria de Internacional do jornal da casa. O caso de Karadzic era interessante: era, até então, o criminoso de guerra mais procurado da Europa, por crimes contra a humanidade e genocídio - dentre os quais o ocorrido em Srebrenica. Eu não fazia idéia do que era Srebrenica até então. O genocídio chamou minha atenção, especialmente por essa razão: como não sei nada sobre um dos maiores crimes da história recente? Foi ai que viajei no tema - literalmente.

Como você ficou sabendo da Marcha da Paz?
Quando visitei Srebrenica pela primeira vez, fiz, por acaso, contato com uma pessoa envolvida com a organização do evento - ele, inclusive, foi um sobrevivente no massacre, e passou exatos dois meses nas florestas se escondendo. Foi ele quem fez o convite. Como minha intenção desde o início era a de estar em Srebrenica em 11 de julho, foi apenas uma questão de 'como chegar'. Optei pelo caminho mais difícil mas, com certeza, o mais interessante.

A Marcha conta com algum tipo de apoio do governo local ou internacional?
Sim. O governo bósnio colabora, por meio do exército, com a montagem dos acampamentos noturnos. ONGs locais também colaboram com o fornecimento de comida e material de divulgação.

Qual impressão ficou para você de sua passagem pela Bósnia, em especial por Srebrenica?
Tanto Srebrenica quanto a Bósnia são lugares com muitas cicatrizes abertas. Enquanto todos os mortos não forem enterrados apropriadamente (o que exclui, obviamente, corpos em valas coletivas - e muitas ainda estão ocultas). São lugares maravilhosos, com uma natureza rica e um povo acolhedor. Mas o presente está ainda muito atrelado ao passado. A guerra deixou um cenário político caótico - não há no mundo lugar como a Bósnia nesse sentido.
A maior parte da caminhada se passa nas florestas, em mata fechada. São poucos os trechos que se passam dentro de vilas, e em muitas vezes, não há ninguém para 'receber' os participantes - até porque muitas vezes não há ninguém nas casas, destruídas e/ ou abandonadas.

O que você espera da Bósnia nos próximos anos?
A principal meta do país é integrar a União Europeia. Temo que nos próximos anos isso não irá acontecer. Em muito por conta da situação política e também financeira - a crise econômica bateu forte na Bósnia, o país teve crescimento negativo de -3% no ano passado. Não espero grandes mudanças para breve. As eleições que ocorrem em outubro de 2010 serão decisivas quanto ao futuro, principalmente no que diz respeito às tensões étnicas.

Você acha que o assunto Srebrenica é /tem sido abordado devidamente pela mídia ou é subestimado?
Srebrenica ganha um minuto no noticiário quando chega o 11 de julho. E é isso. Uma das maiores tragédias humanitárias do século, o maior massacre na Europa aos a Segunda Guerra Mundial, não tem relevância midiática. Infelizmente, nenhuma surpresa. Notícias internacionais são pautadas principalmente pela relevância econômica ou geopolítica. Como a Bósnia é um país pobre e distante de nós, brasileiros, acaba ficando de fora.

Que dificuldades você encontrou durante a Marcha?
Muitas. O convite para a Marcha foi uma surpresa. Não estava preparado para tal evento. Andar 110km usando All-Star é um problema. Tempestades em mata fechada, com a terra se transformando em barro escorregadio, também. A alimentação durante o dia era complicada - pão e água, basicamente. Dormir também era um desafio, principalmente quando fiquei em uma tenda com cerca de 100 homens - sendo que um deles espirrou na minha cara enquanto dormia. Mas foi tudo isso que deixou o meu projeto com a cara que ele tem hoje - and I like it.

É possível ainda hoje encontrar na população bósnia algum resquício das tensões existentes na época da guerra?
Não exatamente, porque elas não estão se matando (risos). Mas é possível notar algumas rusgas entre as etnias, um certo ressentimento, por assim dizer. A grosso modo, os bósnio-muçulmanos são aqueles que querem a união do país, os sérvio-bósnios a separação total e os croatas a aproximação, mas com certo distanciamento.

Que pontos você destaca como mais positivos e mais negativos da Marcha?
De positivo, toda a experiência em si. Nunca fiz nada minimante parecido antes - tanto no que diz respeito meio (caminhada de 110 km em três dias, acampamentos, etc) quanto o fim (chamar a atenção para um massacre que deixou 8 mil mortos). De negativo, as dificuldades oriundas da organização - dificuldade em arrumar uma tenda para dormir, a difícil alimentação. Mas, como disse, tudo isso faz parte da experiência.

Você pensa em ir para a Bósnia novamente e refazer a marcha?
Não. Não pelo país, um dos destinos mais bacanas que já conheci, e não pela Marcha em si, um evento especial e que merece todo o apoio. Mas o mundo é muito grande e há muitas histórias pouco conhecidas para serem contadas. Meu próximo destino é Ruanda, outra terra marcada pelo genocídio.

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